Clarice Lispector é uma bruxa
Já faz um ano, talvez dois, que me obriguei a ler A Preparação do Escritor, de Carrero. Não me obriguei tanto assim, como podem ver, dado que comecei a lê-lo sem nunca terminá-lo. Peço paciência, e que não me chamem de preguiçoso: o trabalho e a faculdade me torram a cabeça; é difícil arranjar motivação pra ler…
De qualquer forma, este breve artigo não carrega meu nome no título, mas o de Clarice. Chega de chororô, voltemos ao assunto.
Logo nas primeiras páginas, antes de citar um trecho de A hora da estrela, Carrero tece um comentário:
Sempre recorrendo à sabedoria de Clarice Lispector, sabemos agora como ela planejou esse livro enfeitiçado que se chama A hora da estrela.
(A preparação do escritor, São Paulo: Iluminuras, 2011, p. 36)
Repare: livro enfeitiçado. Quem enfeitiça é o quê? Feiticeiro. Mas bruxo soa mais legal. Então, se Clarice é autora de um livro enfeitiçado, ela deve ser bruxa. E mais pra frente, Carrero diz exatamente isso:
Essa Clarice era bruxa mesmo. Professora de feitiçaria.
(A preparação do escritor, op. cit., p. 36)
Bem, Carrero deve citá-la mais uma centena de vezes, talvez até a chame de bruxa novamente. Pouco importa. Fato é que essa frase me marcou, me deixou matutando: “Por que é que ela é bruxa? Que é que ela escreveu de tão especial?”.
Já tinha ouvido sobre A hora da estrela, sobre o quão experimental era. Devo até ter lido um trecho ou dois nas aulas de literatura da escola, coisa que já não conservo na memória - exceto um conto de Clarice sobre uma mulher que vira galinha, esse eu tenho que procurar depois (lembro de ter gostado).
Sendo assim, conforme larguei a leitura de A preparação do escritor, larguei também a dúvida e deixei-a pairando no ar, fazendo companhia a tantas outras questões que me incomodam.
O tempo passou. Desde lá, entrei em contato com Joyce pelo romance Retrato do Artista quando Jovem e pela coletânea de contos Dublinenses (tem muita coisa boa aí). O final de Os mortos, com a frustração de Gabriel e o sentimento de quase traição pela esposa… Devo mencionar, também, a construção animista logo no começo de Arábias, dando vida e personalidade às casas e aos postes. Tudo muito bom.
Certo, e daí? E daí que, depois de ler, precisava de outro livro.
Andando pra lá e pra cá no quarto, olhando pras estante e pro armário, me lembrei da bruxa. “Carrero falou bem, deve ser bom”. Devo destacar que, a esse ponto, Quando porcos voarem já havia sido publicado e estava no ar, aqui no site.
Comecei a leitura.
Depois daquelas inesgotáveis páginas em que Rodrigo enrola e enrola e enrola para começar a narrar a história, quase como as mulheres de Lisístrata enrolavam e enrolavam e enrolavam os maridos, comecei a entender o apelido bruxa. Rapaz, essa mulher escreveu meu conto um quarto de século antes de eu nascer.
Chega a ser engraçado, parece que eu plageei a coitada. Vejamos os paralelos:
- Dona Francisca e Macabéa são mulheres e pobres;
- Ambas morrem atropeladas;
- Ambas morrem atropeladas e sonhando acordadas (Macabéa tinha finalmente criado algum senso de si e queria viver, Dona Francisca ansiava pela vida utópica com a família).
Que loucura! Eu ri e alto quando cheguei na parte em que a Mercedes atropela Macabéa - coisa meio mórbida, parando pra pensar, mas não me contive. Foi aterrador.
Claro, a motivação para as duas histórias é muito diferente. Não há cópia nenhuma, lhes asseguro, só paralelos. Meu desejo foi mostrar uma dona de casa sendo atropelada e uma sacola voando, tudo isso enquanto fazia menção à expressão gringa “when pigs fly”. Clarice, por outro lado, imaginou a tragédia de uma nordestina que vive morta e morre viva.
Ambos os atropelamentos servem para dar um final abrupto às personagens. Mas, enquanto Clarice usa o atropelamento como mecanismo para matar Macabéa, eu uso Dona Francisca como mecanismo para mostrar um atropelamento.
A forma também é bem, bem diferente. Meu narrador é onisciente, acha que tudo tem alma (vide o início, retratando a luz e o formigamento como seres conscientes) e conhece tanto a vítima quanto o motorista. O narrador de Clarice, apesar de conhecer o final da história, não sabe nada sobre o dono da Mercedes. Meu narrador não tem nome. O de Clarice chama-se Rodrigo.
Que lição devemos tirar disso, você e eu? Nenhuma. Eu só queria uma desculpa pra falar dessa coincidência. Eu até tinha escrito um parágrafo bonitinho e meloso pra encerrar esse texto, mas refletindo uns meses depois, achei de mau tom. Clarice decerto também acharia, e é melhor respeitá-la… com bruxa não se mexe.