Lucas Renato

2 de Abril de 2025


Assim falou; e uma nuvem negra de dor se apoderou de Aquiles. Levantando com ambas as mãos a poeira enegrecida, atirou-a por cima da cabeça e lacerou seu belo rosto. Sobre a sua túnica perfumada caiu a cinza negra. E ele próprio, grandioso na sua grandiosidade, jazia estatelado na poeira e com ambas as mãos arrancava o cabelo.

Homero

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Quando porcos voarem

As persianas do pequeno quarto estavam fechadas, o que não impedia um feixe luminoso, tímido e corado, de esgueirar-se por uma fenda. Trazia consigo um balde de tinta, e com ele coloria tudo de laranja: o carpete empoeirado, as portas do armário, as cobertas da cama e o gato ali deitado, encinerando seu pelo em tom quente de café passado.

O feixe de luz acariciava com o pincel as lombadas do frajola, ternura mui materna, e nesse embalo morno, o gato acordou. Pôs as patas dianteiras mais à frente, expondo as garras, enquanto dobrava a coluna e fazia da cauda um S.

Certa nuvem passou no céu e começou a puxar de volta o feixe de luz (era uma mãe buscando o filho na casa de um amigo). E, à medida que a luz se afastava, o quarto ia perdendo tonalidade e vida.

Aparece um formigamento no gato, bem na ponta do focinho.

O formigamento toma forma e rapidamente percorre o nariz, dando de cara na testa. O choque é tão grande que ele se quebra e duplica. Nisso, as metades disparam rumo ao fim do corpo, escalando uma sobrancelha cada. Passam pelas orelhas, pescoço, cada uma das finas e delicadas costelas, até se fundirem na cauda em um arrepio prazeroso.

O gato começou a flutuar, então, sobre os morrinhos de lençol amarrotado, erguendo e pousando as patinhas leves, expulsando a soneira do corpo. Queria acordar sua dona com uma lambida na testa, mas chegou ao travesseiro amarelado e apenas sentiu o suor de uma noite mal dormida, sem que a mulher estivesse presente.

Devido às limitações impostas por seu cérebro de noz, o animal concluiu que a senhorinha havia se perdido debaixo do amontoado de cobertas. Afinal, magra como era!

Pois bem, o gato enfiou o nariz e farejou, farejou e farejou. Só suor. Suor e talvez um cheiro meio nojento de quem não se lambe há dias. Entrou de vez para procurar mais fundo, indo de um lado para o outro, de baixo para cima. Rastejou por toda extensão do leito, deixando famílias de pelinhos no lençol, até reaparecer com a cabeça na outra ponta.

Desesperado mas mantendo a compostura, pulou da cama em parábola perfeita. Caminhou com o rabo interrogativo, erguido para cima, movendo-o da esquerda à direita em senoide constante.

Deu meia dúzia de passos, atravessou a porta de madeira entreaberta e um cheiro gostoso lhe atacou os sentidos: ares de ovo frito. Apressou-se até a cozinha e esqueceu-se de toda a preocupação quando, ao chegar lá, descobriu o óbvio. Dona Francisca havia levantado mais cedo naquela manhã.

Em frente ao fogão velho e engordurado estava, em pé, uma mulher magra que colocava cascas de ovo na lixeira da pia. As canelas eram finas, as coxas inexistentes e, quando nua, dava pra contar direitinho as costelas em cada lado. A cabeça não seguia a proporção de finura do restante do corpo: mandíbulas bem-definidas, quase másculas. O cabelo era escuro e estava preso por uma piranha cor-de-oncinha, contrastando bem com os fios das têmporas, sujos com a branquidão da idade. Agora, os dentes… Os dentes, que saltavam da boca meio aberta, pareciam livros mal organizados duma biblioteca velha: amarelados e tortos. Os lábios não eram carnudos, mas curtos. Quase não tinha beiço. Os olhos eram marcantemente claros e, se tirados do contexto, diria-se pertencerem a uma bela moça.

Vestia, já a essa hora, uma calça jeans e uma blusa com escritos em inglês, língua que nem ela e nem o gato entendiam.

O animal encarava o pote de ração com a esperança de que a comida caísse ali. Na superfície vermelha do pote, o nome “Bolinha” estava escrito com caneta permanente preta.

O par de olhos cor-de-azeite olhava distante para a chaleira vazia na boca do fogão. Bolinha miou delicadamente enquanto olhava fixo para o pote. Francisca não respondeu. Miou de novo, agora com mais esforço. A chaleira continuava ali, quietinha, vazia, e Francisca não tirava os olhos dela. Bolinha encarava sua dona enquanto roçava nas pernas esguias, miando e ronronando. Desejava a crocância da clara, a viscosidade da gema, o sabor do óleo…

Ele não perdia a elegância, contudo. Portava-se como o réu que começa toda frase com “vossa excelência” mas que, na verdade, quer mesmo é se jogar contra o juiz e fazer da tribuna um escarcéu.

Como que arrancada de um sono profundo por uma fera monstruosa, Francisca se apercebeu de Bolinha. Esboçou um sorriso débil em seu rosto, sorriso genuíno, ao vê-lo sentado aos seus pés com toda a pompa de um monarca impaciente.

Vivia sozinha com ele e com ele conversava. Daria um bom marido: era quieto, esquivo, amoroso contudo. Pena que Francisca já era casada! E Bolinha é um gato, claro, não nos esqueçamos.

Francisca trabalhava no caixa de uma loja de sapatos femininos com outras duas mulheres, ambas muito mais jovens. Enquanto Dona Francisca folheava o jornal na espera de alguma compra, elas auxiliavam os clientes em dúvida, cuidavam das pilhas de caixas de papelão dos estoques e organizavam as prateleiras envidraçadas.

Tal qual um par de filhas ingratas, as moçoilas foram muito bem recebidas por Francisca. Mas, agora que atingiram certa independência, desprezavam-na. Eram educadas, sim: cumprimentavam-na todos os dias sem falta. Mas nunca puxavam assunto. Fofocavam entre si sabe-se lá sobre o quê e Dona Francisca, coitada, ficava de escanteio! Era obrigada a passar o resto da vida atrás de um balcão frio, esquecida por todos, amada por ninguém.

Como não bastassem as frustrações com as colegas, Francisca começou a ser perseguida, já há alguns dias, por um medo primitivo: fome.

Ela não é dona da loja nem nada - quem dera!, tampouco administra as finanças. Mas a cada dia vinham menos clientes e, os que vinham, acabavam não comprando nada. Davam voltas incansáveis nos corredores e só olhavam, usando a loja como um museu da moda. É certo que os negócios iam melhor antigamente, e uma reportagem do jornal veio a confirmar essa tendência.

Diziam que esses estabelecimentos sobreviviam nos Shoppings, naqueles cubículos jeitosos. Mas não em cidadezinhas pequenas. Não mais, porque se as mulheres não queriam se dar ao trabalho de ir à capital para comprar sapatos ou, simplesmente, não tinham dinheiro para isso, bastava acessarem um tal de “aplicativo” onde se comprava da China pela metade do preço.

Até mesmo Francisca, antiquada como é, rendeu-se e pediu às colegas que comprassem coisas para ela na internet. Não é preciso dizer que Francisca pagava pelas compras, claro. Deus nos livre de ficar devendo pros outros!

Até Bolinha ganhou presentes. No último Natal, as colegas mostraram uma roupinha pra gato que estava sendo vendida por merreca. Era cor-de-oncinha, uma graça! Combinava com o prendedor. Mas, quando chegou, Bolinha não deixou Francisca vesti-lo. A roupa ficou guardada numa gaveta qualquer e esquecida.

Estalinhos agudos de fritura ecoaram de longe e Francisca voltou à pequena cozinha inacabada.

O ovo e o óleo degladiavam-se na frigideira, gerando estalos cada vez mais intensos que jorravam partículas de gordura por aí. Pareciam mais faíscas e gotas de sangue a voar numa batalha sangrenta do que a mundana tarefa de fazer o café da manhã.

Bolinha miava. Francisca apagou o fogo, avisando o gato de que a comida ainda estava muito quente e que deveria aguardar se não quisesse queimar sua boquinha. Ele fitava a frigideira e continuava a miar. Ela deu um passo para trás e sentou-se à mesa vazia.

Na cadeira metálica havia uns adesivos brancos agarrados ao metal, bem esparsos. Alguns tinham uma ponta solta, que muito convidava quem os visse a puxá-los… Eram o resto da tinta. Nas partes baixas das pernas bambas predominava a cor necrosa da ferrugem. As outras cadeiras do conjunto estavam desgastadas pelo tempo, mas intocadas, como as fotografias da parede que, apesar de deterioradas, conservavam memórias nostálgicas com delicada precisão.

Os combatentes da frigideira perdiam o ânimo. Bastaram instantes para que os sons de violência cessassem. Ao final, o ovo predominou sobre o óleo, como havia de ser. E, ignorando o drama que ocorria naquele fogão engordurado, Bolinha admirava a preguiça da senhorinha, que lembrava a sua própria.

Dona Francisca olhou em volta. Primeiro para a parede à esquerda. Tinha reboco e era branca, apesar dos toques de mofo aqui e ali. O relógio da Unimed pendurado lá no alto por um prego torto e alaranjado indicava sete horas.

Ainda havia tempo.

Girando a cabeça, seu olhar atravessou o teto com as lâmpadas fosforescentes. Uma estava acesa, radiante e barulhenta com leve zunido agudo; a outra, queimada. A visão deturpada pela luz forte demorou a discernir os objetos à direita. Reconheceu, primeiro, a jarra azul escuro onde guardava o café passado. Viu, depois, o velho fogão com a frigideira silenciosa. Armários de MDF podre ocultavam a parede sem reboco. Uma janelinha no meio, acima da pia de aço inoxidável, mostrava um muro de tijolinhos há muito esverdeados pelo musgo.

Olhou para o chão de revesgueio e viu Bolinha espiando o cabo da frigideira que estava estendido para fora do fogão.

Cansada, Francisca debruçou-se na toalha de mesa plastificada, deitando a cabeça no braço esquerdo. Bem à sua frente, noutra parede de tijolos à vista, estavam pregadas três fotografias.

Na mais da esquerda via-se um casamento. A noiva parecia desconfortável com a barriga daquele tamanho no justíssimo vestido branco. O marido nunca esteve tão confiante e seu sorriso alargava-se de orelha a orelha, o que caía bem com seu topete castanho-escuro e realçava o bigodão.

Na foto do meio aparecia um menino agarrado nos braços da mãe. Ele vestia uma camiseta vermelha com uma mancha branca no peito, talvez de um sorvete. Mancha branca como os fios grisalhos de Francisca; branca como a tintura que se esvai das cadeiras; branca como a parede mofada; branca como a clara do ovo vitorioso e branca como os pelos do peito de Bolinha. A mãe sorria na foto e na cadeira da cozinha. Estavam sobre um gramado verdinho bem ralo, e no fundo enxergava-se com, certa dificuldade, a forma circular do labirinto de Nova Petrópolis.

A terceira e última foto, muito menor do que as outras, mostrava o mesmo garoto, agora com seus quinze anos. Os cabelos, penteados para trás com gel (certamente para imitar o pai, apesar de nunca admiti-lo) não combinavam com o uniforme amarelo do São José. Sorria. Sorria timidamente, porque não queria estar ali.

Eram fotos que se podia olhar por horas a fio.

O grande estouro da frigideira se espatifando no chão de piso frio fez Francisca acordar num pulo. Bolinha, esse gato danado, achou que podia roubar o ovo frito sem que ela percebesse. Gato danado! ELa esperou o glutão devorar os restos do ovo e, depois de satisfeito, limpou rapidamente passando um perfex com detergente. Pensou que seria uma boa hora limpar a casa toda. Precisava deixar tudo nos trinques, esperava visita.

Aproveitou que já estava com o pano em mãos e esfregou tudo que viu pela frente: balcão, armário, mesa, parede, fotografia, cama, gato, chão, privada, janela… Impecável, tudo limpinho. E só precisou de perfex e detergente! Era mestre na economia doméstica, sim senhor. Precisava, né, não se sabe o que vem pela frente.

Atirou o pano sujo na pia e derramou o resto de café num copo de vidro. Tentou beber mas cuspiu fora, ninguém merece beber café morno. Morno? Tinha acabado de passar, logo antes de Bolinha aparecer na cozinha… Olhou pro relógio e se deparou com o horário: dez horas. O menino disse que chegaria por volta daz onze. Precisava sair!

Deixou o copo largado de qualquer jeito e despediu-se do gato sem nem olhar pra trás. Passou da porta de metal e andou pela parede esverdeada até sair pelo portãozinho da rua. Começando a caminhada ao mercado, vislumbrou mais uma vez aquela fração de casa em que vivia, com o morro erguido lá no fundo.

O terreno do imóvel era espaçoso. Cabia um casarão ali, desses em que os médicos vivem com suas famílias, carros e cachorros.

O chão do terreno era concreto puro, morto, desgastado pelo tempo e em toda parte deformado. Se uma casa fosse gerada e parida, como um animal, diria-se que a casa de Dona Francisca morreu ainda no ventre da mãe, e que víamos agora o resto do aborto.

Apesar da paisagem bucólica, uns capins altos brotavam das rachaduras sujas de terra. Uma florzinha, aqui e ali, revelava-se no meio do cemitério sem lápide. Júnior gostava de brincar nesse matagal doméstico. Não foi só uma vez que Francisca pegou o filho assoprando dentes de leão, pedindo que o pai voltasse com essa crendisse.

A enorme plataforma cinza-natimorta começou como a fundação da casa, e o tempo ainda não havia apagado a divisão de cada cômodo. Via-se claramente onde era para ser o quarto dos pais e das crianças, o jardim dos fundos e o pátio da frente. Mas nada fora construído por cima. Com exceção, claro, da cozinha, da despensa (que Francisca usa de quarto) e do banheiro, que juntos formavam o casebre que Dona Francisca chama de lar. O próprio muro de tijolos esverdeados, mencionado a pouco, era do vizinho. Morava numa verdadeira quitinete a céu aberto.

O plano não era viver no cadáver de uma casa em construção, longe disso. Construiriam um casarão bonito e moderno. Júnior teria amplo espaço para correr pra lá e pra cá atrás do cachorro da família, um labrador de pelo macio - ou quem sabe um pastor alemão! Mas as obras foram interrompidas quando Dom Sebastião, o noivo da foto esquerda, sumiu a quatro de agosto de noventa e oito quando ia para o trabalho em Porto Alegre.

Ninguém sabia por onde andava a essa altura. Havia quem dissesse que foi latrocínio. Centro da capital é perigoso. Devem ter visto o terno arrumado de office boy, abordaram o camarada, ele resistiu… Aquela mesma história de sempre. Uns tantos outros achavam que era algo muito mais simples: tinha uma amante e fugiu com ela. Francisca nunca foi muito bonita, diziam eles, e Montenegro é pequena pra quem tem ambição.

Mas Francisca conhecia o marido e sabia que isso era tudo bobagem. Uma hora ele voltaria. Sim, e voltaria com um carrão. Júnior estaria ao seu lado, no passageiro. Talvez um netinho no banco de trás. A nora, uma loira bem bonita e gentil cuidando de um bebê na cadeirinha, que tinha os olhos da mãe e o sorriso do pai… Dona Francisca poderia, finalmente, retomar a vida.

Continuou a contemplar o toquinho da casa quando lembrou-se dos deboches infantis que seu filho aturava. Pois é, a velha canção de Vinícius de Moraes ainda ecoava no fundo do ouvido: era uma casa, muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada. Francisca sempre assegurava pro filho que a casa não ficava na rua dos bobos e que o número certamente não era zero. Foi em torno dessa época que Francisca pendurou uma rede na frente da casa. Prendeu uma ponta no poste de luz e a outra numa das paredes. Deu um tempo e o pessoal da prefeitura chegou para desmontá-la. Até tentou explicar que não atrapalhava ninguém, que era pela criança, mas a prefeitura mandou tirar mesmo assim, e o enjambre foi confiscado antes de Júnior mostrar pros coleguinhas.

Deve ter sido denúncia do vizinho, homem maldoso. Agora, denunciar a rua esburacada e as calçadas tortas ninguém quer, né. Que coisa.

A mulher cambaleava meio torta em direção à estação ferroviária, virando à esquerda na última esquina. Um cachorro preto com focinho acinzentado andava de rabo erguido na calçada, do outro lado da rua. Garotos passaram de bicicleta gritando alto e empinando a roda da frente. Francisca sentia saudades, tinha a impressão de que Júnior sumiu com a idade deles.

Lembrou-se de mais um episódio. Estava sentada em uma poltrona e olhava para o filho no colo. Assistiam a um filme no cinema, o marido ao lado. Podia sentir o cheiro da pipoca amanteigada e as vibrações das caixas de som. Sebastião comia pipoca doce - ele sempre foi mais formigão que ela. O menino curtia um cochilo nos braços da mãe. Que lembrança! Se pudesse escolher um momento, uma cena em que pudesse eternizar toda sua vida, seria este: o marido ao lado, o filho no colo, a pipoca na boca e o filme na tela.

A imagem se foi como veio e Francisca já passava pelas portas automáticas do supermercado, empurrando um carrinho de compras. A roda dianteira estava torta, exigindo força na condução. Andava depressa para o açougue.

Ninguém reconhecia Francisca e, se reconhecia, não fazia questão de chamá-la. O que, no fim das contas, era coisa muito boa. Francisca tinha pressa. Conversa fiada é coisa de gente que não tem o que fazer da vida, de gente que não tem visita.

Curvada sobre o carrinho, passou pelas estantes de produtos de limpeza. As rodas gemiam em agonia. Quem estivesse pertinho conseguia ouvir, também, as articulações mal-lubrificadas de dona Francisca.

Lá, mais para o fundo, para além dos sabonetes e papeis higiênicos, estava erguido um exército de geladeiras. E cada soldado estava juntinho, lado a lado. Belíssima falange. Ela aproximou-se de fininho, o passo encurtando a cada metro. Que frio danado! Era um corpo magro e o corpo lutava contra o gelo. Devia ter vindo de casaco - se bem que na rua era quente, um bafo.

Deteu-se e ficou encarando por um tempo as embalagens enquanto encolhia-se para preservar a vida. Tinha de tudo: boi, porco, frango. Se bobiar tinha até carne de cachorro mais para o fundo, atrás do pão de alho. Não, não, cachorrinhos e gatinhos são da família. Comer cachorro é uma ideia tão grotesca quanto comer um homem ou Bolinha.

Enfim.

Não só havia um monte de animal, mas também uma variedade de cortes. Seria possível pegar um fígado, uma costela, um lombo, um coração e tudo o mais, juntá-los conforme as instruções pregadas na parede do açougue e montar, no final disso, um boizinho para levar embora?

Não, mas que instrução? O mapa de cortes? Francisca perdia tempo nessas divagações bestas. Por sinal, de onde vinha tanta ideia torta? Eram invasoras de sua mente, decerto. Imigrantes. Algumas das imagens eram dela, como as lembranças do filho. O resto, sei lá. Lembranças dos outros, talvez? Quem sabe uma lembrança que escapou da mente de um, perambulou um tempo no mundo e foi parar, enfim, na cabeça de dona Francisca. Igual pulga! Os angolanos e venezuelanos não fazem isso, também? Os jornais dizem que sim. Francisca sentiu-se animada com a descoberta. Com certeza as memórias migravam pra lá e pra cá igual gente, igual pulga.

Ainda estava a três passos do freezer. Queria levar carne de porco. Porco e purê de batatas. Era o que costumava cozinhar para a família nos finais de semana, quando os três se reuniam na apertada cozinha e assistiam aos programas da Globo. Quando o sinal estava fora do ar ou a eletricidade caía, sentavam na calçada para ver os carros passarem e as pombas que se aconchegavam na fiação da rua. A televisão quebrou uns anos atrás, mas as pombas ainda apareciam.

Fazia muito frio. Sentia-se um picolé. Um picolé de morango, para combinar com a cor da blusa.

Tremeu-se toda quando abriu uma fresta da geladeira. Um formigamento apareceu em dona Francisca: vinha dos braços e saía pelas costas. Enfiou com cuidado uma das mãos e temeu que ela caísse. Sim, certamente cairia. Primeiro sentiria frio, depois não sentiria mais nada e enfim veria a mãozinha espatifar-se no chão como bloco de gelo qualquer. Ficaria maneta para o resto da vida e não poderia mais trabalhar no caixa da loja de sapatos.

Segurava-se para não grunhir, e foi com muito sacrifício que arrancou o lombo de porco das tripas da geladeira, empurrando a porta com o braço esquerdo para fechá-la de vez.

Fugiu ligeira empurrando o carrinho torto e arrastando a coluna torta. Custou para recuperar o fôlego. Tirou um papelzinho do bolso e começou a ler a lista de compras.

Carne já foi, falta um saco de batatas e a bebida. Será que o Júnior bebe? Melhor levar refrigerante, né. Mais seguro. Ele gostava muito de… Fruki? Não, não, era Charrua. Era, era Charrua. Leva dois litros, então.

Deu uma passeada a mais no mercado, reparando nas donas de casa anônimas que faziam o mesmo. Terminou com um carrinho quase vazio, levando só o que era estritamente necessário. Mestre na economia.

Entrou na fila do caixa logo atrás de um senhor barrigudo que levava um fardo de cerveja e maminha pro churrasco. Ele pagou e foi embora, bem rápido. Bom dia, disse Francisca à moça do caixa, uma jovem de cabelos cacheados, enquanto os produtos passavam no leitor que apitava. É no cartão? Não, é em dinheiro. Francisca não confiava em banco, coisa que puxou do marido.

De fato, Sebastião costumava dizer que banco não era coisa muito certa. Ela não lembrava direito da explicação, mas era algo sobre como eles pegam dinheiro dos outros e não devolvem mais. Inclusive, lembrando agora, foi depois de uma briga com o banco que Sebastião deixou a casa. Então tá aí, duas razões pra não se gostar de banco. Eles roubam nosso dinheiro e somem com nossos maridos! Dona Francisca olhava pra rua, meio cabisbaixa, os dentes bagunçados pra fora enquanto respirava pela boca.

A mulher cacheada ficou lhe encarando por um tempo. Não tinha se dado conta de que os produtos estavam nas sacolas e que tudo foi pago. Bastava ir embora. Não tinha ninguém na fila do mercado, mas era inconveninete ficar ali plantada. Deixou o carrinho num canto qualquer e esquecido e arrastou-se mancando até a saída.

Olhou mais calma para as sacolas plásticas finas que brandiam com orgulho o logotipo do mercado. Mal sabiam elas que eventualmente parariam na lixeira da cozinha ou talvez na do banheiro. Quem terá sido o primeiro a usar uma sacola de mercado como lixeira? Dona Francisca sorria.

Uma das sacolas estava úmida, quase molhada. A água vinha do suor da embalagem do lombo de porco. Ou talvez fosse o choro do pobre porquinho que já antevia seu destino: seria cozido e comido por Francisca e Júnior no almoço de reencontro. A essa altura já tinha cruzado o estacionamento e voltava para casa.

O sol rachava o asfalto e a nuca de Dona Francisca. Mas sentia frio. Tremia. Que coisa! Estava nervosa. Sim, por causa da vinda do filho. Por que ficou anos sem contatá-la? Tinha engravidado a namorada, de certo. Mas tinha namorada? Namorado? Hoje em dia, né, vai saber. Arranjou um emprego, de repente. Que emprego? Não, se vinha depois de tanto tempo é porque precisava de dinheiro. É, morava na rua e precisava de dinheiro. Podia ver o filho pedindo esmola num viaduto de Porto Alegre. Homens e mulheres, crianças e cachorros iam e vinham do centro sem lhe darem conversa. Pobrezinho. Era só o que faltava!

Não, não, mas Júnior era inteligente. Mais inteligente que ela ou que Sebastião.

Talvez fosse pessoa importante, talvez estivesse cursando medicina! Já podia vê-lo num jaleco branquinho, cabelo arrumado, sapatos pretos bem polidos. Quem sabe um bigode no rosto, como o pai. Aquele aparelho de medir batimentos cardíacos em volta do pescoço, tudo muito limpo e bonito. Ou que tal: já era formado e tinha um consultório em Porto Alegre, vinha a Montenegro para buscar a mãe, morariam numa casa grande! E Sebastião já estaria lá, esperando com um cachorro enorme correndo no gramado e teriam outros filhos jogando bola, livres e saltitantes e uma menina que corria em sua direção e chamava-a de vovó, e um sorriso se alargava enquanto o vestidinho dançava ao ritmo do vento e Dona Francisca atravessou a rua sem medo e sem olhar os lados para correr até a menina…

Renan brigou com a esposa na noite de sexta-feira. Dormiu no sofá e acordou esperniando com dores na lombar numa suadeira nojenta. Justo, pois tinha sido pego assistindo “filme adulto” na sala de estar. A essa altura já era um hábito, mas a mulher só descobriu agora.

Naquele sábado, decidiu sair mais cedo para fazer um agrado à esposa. O sol rachava por entre as cortinas, o calor abafado envolvia todo o corpo e nem dentro de casa havia sossego. Lavou o rosto, foi para a garagem e entrou no carro. Tinha um gosto amargo na boca e pensava em se jogar duma ponte. Se bem que as pontes mais próximas de Montenegro ficavam meio longe. Era mais fácil entrar com o carro no rio, não tem barreira no cais.

E o rosto se comprimia de rancor e vergonha.

Esperou um cachorro preto passar e tirou o carro da garagem. Tinha planos de passar na padaria e comprar os salgados que a mulher tanto gosta. Esse agrado podia fazer sua cabeça.

Parou no semáforo e se maravilhou com a vista, apesar de consternado. O peso em sua cabeça diminuia conforme olhava o horizonte. Era uma manhã bonita de céu azulado. Bem-te-vis cantavam do alto dos céus e as pombas comiam restos de macumba numa esquina. Queria ele ser um passarinho e voar para cima, longe do chão onde rastejam os homens.

Percorreu boa parte do caminho, faltavam poucas quadras. Tocava pop americano no rádio, uma dessas músicas que a gente nunca sabe o nome. As folhas e a sujeira da rua levantavam num redemoinho, um vento forte soprava na altura do supermercado. Tirou os olhos da pista para olhar os passarinhos por um breve instante e o carro bateu primeiro nos tornozelos finos de Dona Francisca, bem no parachoque, depois o quadril frágil arremeteu-se no capô e o corpo todo girou sobre o parabrisa que trincava nessa fração de segundo descuidado. Os braços de Francisca ergueram-se com o sangue que jorrava.

Do saco plástico vagabundo libertou-se o pedaço de porco e voou majestosamente por entre bem-te-vis, acima dos postes, acima de tudo, e bem se viu aquele pedaço de carne estatelado no asfalto que um dia se chamou Dona Francisca.